quarta-feira, março 05, 2008

De tirar o tapete debaixo dos pés...
Encontrei este artigo num suplemento do público:

Comida do lixo

Os "Fregan" são recolectores dos tempos modernos. Uma nova subcultura urbana que cresce em Nova Iorque.
Texto de Erika Hayasaki, Fotografia de Carolyn Cole.





Madeline Nelson prepara o almoço no seu modesta apartamento, em Nova lorque. Uma salada feita de cenoura ralada e alface que ela encontrou no contentor de lixo de uma loja Whole Foods, urna cadeia de supermercados especializada em alimentos naturais e orgânicos. Para temperar o molho, Nelson misturou-lhe um pouco de miso em pó, que encontrou num saco de lixo de Chinatown. O pão que cozeu foi feito com fermento recuperado do lixo de uma mercearia que vende produtos do Médio Oriente.
Nelson é uma ex-gestora de uma grande empresa e tem dinheiro suficiente para jantar em bons restaurantes. Mas ela prefere usar produtos que encontra no lixo e tarnsformá-los em refeições sofisticadas, sem gastar um cêntimo.Hoje Nelson descongelou uma fatia de paté que encontrou três dias antes de acabar o prazo de validade num contentor de lixo à porta de uma loja de alimentos saudáveis e fez uma canja com restos do “buffet” de um restaurante, que conseguiu salvar antes que fossem deitados no lixo.
Nelson, de 51 anos, tinha um salário de centenas de milhares de dólares por ano como directora de comunicação da famosa cadeia de livrarias americana Barnes and Noble. Mas cansou-se uma empresa multimilionária, em 2005 e tornou-se uma “freegan”-uma expressão que combina “vegan”, a designação dos que não consomem nenhum tipo de proteínas animais, e “free”, com o duplo significado de “livre” e gratuito”. Os “freegan”, a urbana em crescimento, são pessoas que reduziram os seus hábitos de consumo e que vivem daquilo que os outros deitam fora.
Os pioneiros eram “vegan”, mas o conceito conquistou comedores de carne.
Ainda que muitos dos “freegan” pioneiros sejam “vegan”, o conceito conquistou Nelson e muitos outros comedores de carne como ela, que não querem depender de empresas que eles consideram que delapidam os recursos naturais, prejudicam o ambiente e beneficiam de práticas laborais injustas.
“0 que nós fazemos é, de facto, socialmente inaceitável”, diz Nelson. “Nem toda a gente vai fazer isto, mas esperamos que leve algumas pessoas a esforçar-se um pouco e a reduzir os seus consumos”.
Nelson costumava gastar mais de cem mil dólares (72.000 euros) por ano em alimentos, vestuário, livros, transportes e na sua hipoteca de um apartamento de três divisões em Greenwich Village. Agora, vive das suas poupanças, faz trabalho voluntário em vez de trabalho remunerado e recolhe comida nos caixotes em vez de fazer compras em supermercados. Condimenta a salada com sementes que colhe nos quintais dos vizinhos, congela as “bagels” e a sopa que encontra no lixo para os fazer durar mais e vendeu o seu apartamento de três divisões para comprar outra mais pequeno, Brooklyn, a uma hora de bicicleta de Manhattan. As suas despesas anuais somam agora 25.000 dólares (18.000 euros). “Tinha umas 40 camisas só para usar no trabalho”, diz Nelson, enquanto beberica um chá quente com folhas de hortelã e estévia — uma planta com propriedades edulcorantes que colheu numa horta comunitária. Abana a cabeça com incredulidade: “Quarenta camisas... Só para o trabalho!”.
Apesar de a reutilização de roupas e de móveis não chocar a maior parte das pessoas, rebuscar no meio de montes de lixo em busca de comida pode ser impensável para muitos. Esta noite, Nelson e o seu amigo “freegan” Adam Weissman organizam uma visita guiada ao lixo de Nova lorque. O grupo inclui quarenta recolectores novatos e veteranos, entre os quais estudantes universitários, um professor de liceu, um taxista e um antigo banqueiro de investimentos. Um veterano distribui luvas de plástico. Um empregado de um supermercado D’Agostino, em plena Manhattan, acaba de pôr o lixo na rua. Os sacos de plástico transparentes que se alinham no passeio marcado pelas manchas de pastilha elástica estão cheios a abarrotar de pêssegos tocados beringelas descoloridas, “bagels” do dia anterior cobertos de sementes de papoila e delícias do mar. Cuidadosamente, para não rasgar os sacos - o que iria espalhar o seu conteúdo no passeio e enfurecer os donos das lojas — alguns dos elementos do grupo desatam os nós dos sacos e começam a rebuscar o lixo com as mãos nuas. O aroma doce-amargo de coentros, bananas e pão espalha-se pelo ar. Duas empregadas de uma loja de pintura de unhas, ali mesmo ao lado, saem para a rua e ficam a olhar o grupo. Alguns dos novatos afastam-se, com um ar envergonhado. “A única coisa que digo ás pessoas que nunca abriram um saco de lixo, para as encorajar, é que experimentem”, diz Nelson. “Avancem”. Alguns começam a encher mochilas e sacos de plástico com comida que parece em perfeito estado de conservação: alfaces, frascos de molho, pacotes de salada com rebentos de rucola, abacates, maçãs verdes e vermelhas, maçarocas de milho — meras migalhas no meio das 23.000 toneladas de comida que os novaiorquinos atiram para o lixo por ano.
“Uau! Alguém encontrou o leite de soja!”, diz Cindy Rosin, 31 anos, uma designer gráfica “freelancer”. “Grande achado.” Dois homens vestidos com elegantes calças pretas, camisas abotoadas e sapatos impecavelmente engraxados aproximam-se do grupo. “Desculpem, mas o que é isto?” diz um deles. ‘É a justiça popular aplicada aos legumes?” “É super-consumismo”, reaponde Gracie Janove, 19 anos, uma estudante de antropologia com um pendente em forma decrescente pendurado de um fio à volta do pescoço. Janove, que mergulhou no seu primeiro contentor de lixo durante uma viagem a França, costuma vasculhar olho das padarias de Nova lorque em busca de bolos e o lixo de mercearias para se abastecer de fruta. D’Agostino’s, TraderJoe’s e Whole Foods — as lojas cujos contentores são mais frequentados pelos ‘freegan” — dão os alimentos comestíveis a que já não querem comercializar a organizações que preparam refeições para os pobres, segundo nos disseram os seus porta-vozes. Mas tanto os “freegans” como os especialistas de alimentação dizem que uma grande quantidade de comida em boas condições vai parar ao lixo. E as empresas mais pequenas muitas vezes não têm acordos com bancos de alimentos e não se querem dar ao trabalho de fazer doações. “Encontrámos latas de conservas e massa em embalagens fechadas”, diz Nelson, que há poucos dias encontrou pilhas de salsa, alface, cebolas e até uma planta no seu vaso num caixote de lixo de uma loja Whole Foods. Às vezes uma loja não vende um alimento porque houve um erro no seu processamento, porque não tem a cor ou a forma certa e não porque ele não esteja em perfeitas condições para ser consumido, diz Beth Osborne Daponte, uma experiente investigadora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade de Yale, que trabalhou na campanha Hunger io America em 2006. A Agência de Protecção Ambiental dos EUA (EPA) estima que os americanos produzem 245 milhões de toneladas de lixo por ano e que cerca de 12 por cento dele é comida. Muita da comida que as lojas atiram para o lixo no fim do seu prazo de validade ainda está em condições de ser consumida. “É um facto que não devíamos desperdiçar tanto como desperdiçamos”, diz Daponte. ”Mas para mergulhar num contentor é preciso estar disposto a correr um risco. Muita da comida pode estar óptima, mas alguma pode estar contaminada”. Os responsáveis dos supermercados dizem por seu lado que a comida encontrada nos seus caixotes de lixo não deve ser consumida. “Os alimentos que deitamos fora são os que não são comestíveis nem são seguros para doar”, diz Aahley Hawkmns, porta-voz da Whole Foods. Mas os critérios de uma loja quanto àquilo que é ou não comestível podem ser irrealistas, diz Weisaman, que dá um exemplo; uma pessoa em casa não deita fora urna banana só porque tem umas manchas castanhas. Enquanto Nelson e Weissman orientam o grupo até à sua próxima paragem desta excursão pelo lixo, um empregado da D’Agostino’s põe na rua um enorme saco de bagels. Os experientes “freegans’ olham para o saco mas nem sequer param. Em vez disso, conduzem o grupo para a Daniel’s Ragela, do outro lado da rua, que ganhou recentemente o galardão de melhor loja de bagels de Nova Iorque numa votação online. “Somos muito exigentes,” diz Oeirdre Rennert, que prefere não dizer onde trabalha devido ao estigma associado à sua actividade respigadora.
Daniel’s fechou às 21h00 e à frente da loja alinham-se urna série de sacos de lixo pretos. O grupo fareja e apalpa os sacos. Abrem aqueles cujo conteúdo está mais macio e que cheiram a pão acabado de cozer. Há quilos de bagels: de cebola, canela e passas, sésamo... “Às vezes encontramos um saco que temos restos de café misturados com os bagels”, explica Rosin. “Quando eles são simpáticos, separam- nos”Nelson põe de lado dois sacos de bagels para congelar quando chegar a casa. Algumas portas mais abaixo, no pátio exterior de um restaurante elegante, os clientes apreciam um copo de vinho, ignorando os exploradores de comida, enquanto os empregados levantam os pratos meios cheios de massa e salada. Desde que mudou o seu estilo de vida, Nelson aprendeu de quantas coisas pode prescindir. Ainda compra papel higiénico e comida para os seus dois gatos, mas não compra roupa há três anos. Nem entra num supermercado para comprar ovos, legumes, fruta, pão ou café. O seu apartamento está quase todo mobilado com restos da sua antiga vida - um sofá com o tecido algo gasto, uma cuidada colecção de livros — e está decorado com algumas coisas que encontrou no lixo: uma cadeira, um móvel para CD, um tapete, a cabeceira da cama. Os móveis da cozinha estão cheios de comida que não lhe custaram nada: bolos instantâneos, recheio para peru, molho de caril, arroz doce.
O congelador tem pão de aveia, sorvete de lima e de pepino, sopa de tomate e manjericão e bagels. Foi tudo encontrado no lixo. “Isto não é como a carruagem da Gata BorraIheira. Não é porque já passam dois ou três dias do prazo de validade que se vai tudo transformar em abóboras”, diz ela. No ano passado, Nelson perguntou à sua família se não se importava que ela fizesse o jantar do Dia de Acção de Graças com comida recuperada. A príncipio acharam a ideia estranha, mas acabaram por aceitar e por gozar de um elaborado festim. Nelson adorava passear pelos grandes armazéns e comprar livros e sapatos. Agora experimenta a mesma satisfação ao encontrar 20 frangos assados temperados com alecrim num contentor da Gourmet Garage ou enquanto conversa com amigos durante um almoço feito com lixo. E nunca foi tão feliz.•



Exclusivo PÚBLICO/Los Angeles Times



"Nelson ainda faz compras: papel higiénico e comida - para os seus dois gatos (...)"




1 comentário:

Anónimo disse...

Pois é...o ser humano ainda há-de dar uma volta de 360º. Cada vez mais se usa só o instito em vez da racionalidade. Mais tarde ou mais cedo, essa volta de 360º, dar-se-à...E se voltarmos à recolecção não me admira nada. Mudam-se oe tempos ,mudam-se as vontades.